Como Yu-Kai Chou revolucionou o conceito de gamificação

Há alguns anos atrás me deparei com um desafio. A grosso modo, deveria alavancar o engajamento de um determinado aplicativo com o qual passaria a trabalhar nos próximos meses. Lá fui eu partir para um Discovery buscando insumos e me atendo às características específicas com as quais precisaria lidar para atender ao meu objetivo.

Foi aí que me deparei com um conceito que já tinha ouvido falar antes, mas não havia me debruçado em detalhes para compreender seu verdadeiro potencial e como poderia ser incorporado em basicamente qualquer aspectos de negócio do dia a dia: a gamificação (ou gamification, no original).

Não, gamificação não é meramente adicionar mecânicas de jogos em diferentes plataformas, como um site, uma comunidade on-line ou um aplicativo. Se trata de estratégias e métodos adotados que visam “derivar todos os elementos divertidos e viciantes encontrados nos jogos e aplicá-los em atividades produtivas ou do mundo real”, segundo a definição de Yu-kai Chou, referência mundial no tema e pioneiro nos estudos de gamificação desde 2003.

Essa definição, inclusive, traduz o que ele chama de “Design Focado no Ser Humano” em oposição a “Design Focado na Função”. É um processo de design que otimiza o ser humano no sistema, em oposição à pura eficiência do sistema.

Conheci o autor Yu-kai Chou justamente durante a discovery que estava realizando em 2016, enquanto ainda estava cambaleando sobre o tema e me deparei com sua palestra para o TEDx Talks realizado em Lausanne, na Suíça, em 2014. Grande parte deste artigo, inclusive, traz  o conteúdo nela apresentado de forma adaptada, afinal ele se mantém extremamente atualizado, mesmo 10 anos depois.

Palestra com o tema "Gamificação para melhorar o nosso mundo" apresentada por Yu-kai Chou no TEDxLausann.

Quem são os gamers hoje em dia?

Na palestra acima, ele traz uma boa contextualização em relação a definição do tema “Gamificação” em si. A começar por uma pergunta bem básica: Quem são os gamers hoje em dia?

Segundo a Pesquisa Game Brasil (PGB), levantamento anual sobre o consumo de jogos eletrônicos em nosso país que chegou a sua 11ª edição em 2024, 73,9% das pessoas entrevistadas afirmaram ter o hábito de jogar videogames.

O crescimento é de 3,8 pontos em relação a 2023, e as mulheres são maioria. Representam 50,9% do total de jogadores.

Em termos de faixa etária, a maior concentração de gamers está entre as faixas de 35 a 39 anos (16,9%) e 30 a 34 anos (16,2%). A escolaridade mais citada foi o ensino superior completo (40,2%), seguida do ensino médio completo (31,1%).

O que isso significa, na prática? Que o brasileiro médio é um gamer. Ou seja, videogames não estão concentrados com um público infantil masculino, como o imaginário popular pode nos levar a pensar: são pessoas que buscam por entretenimento de forma geral.

Gamificação: o equívoco com as recompensas

Em um primeiro momento, podemos interpretar que a mera inclusão de alguns elementos presentes dos videogames em plataformas distintas (como um aplicativo ou site) concretize a gamificação das mesmas. Normalmente, esses elementos se tratam de Pontos, Insígnias e tabelas de classificação (Points, Badges e Leaderboards no original, ou PBL).

Pela definição dada no início do texto, esse é um grande equívoco.

Isso porque são aspectos que, apesar de estarem presentes em grande parte dos videogames, são apenas parte de um contexto maior. Se um gamer for questionado dos motivos pelos quais ele gosta de determinado jogo, ele não vai mencionar que é por conta do uso de pontos ou conquista de insígnias. É provável que a resposta se aproxime de algo, como: o lore da história apresentada, a imersão em determinados mundos, os desafios apresentados etc. Ou seja, boas experiências de gamificação não começam por seus elementos, mas sim pelo o que Yu-kai Chou chama de core drives.

Framework Octalysis: Compreendendo Core Drives

Core Drives podem ser interpretados como a motivação das pessoas. A razão por trás de determinados comportamentos. Visando compreendê-los, Yu-kai Chou criou o framework Octalysis com o objetivo final de somar ao design de experiências dos usuários, identificando e detalhando quais os aspectos mais envolventes e motivadores de usuários/plataforma.

DiagramaDescrição gerada automaticamente
Detalhamento do framework Octalysis, desenvolvido por Yu-kai Chou.

Detalho abaixo quais são os 8 core drives mapeados, bem como seus significados e exemplos de aplicações.

1) Significado e chamado ao épico

Motivação pelo qual os usuários acreditam que fazem parte de algo maior que eles mesmos: ou seja, a contribuição para uma iniciativa com grande importância.

Podemos usar o Wikipedia como exemplo: como é possível manter um acervo com mais de 1,1 milhão de artigos válidos e constantemente atualizados, sendo que o site não exibe publicidade e tem suas receitas extremamente controladas? Eles contam com voluntários, ou wikipedistas para realização da revisão de forma recorrente.

O motivo para mais de 3 milhões de pessoas já terem realizado alterações em pelo menos uma das páginas da plataforma é a noção de contribuição para o conhecimento humano: se trata de conteúdo acessível e disponibilizado gratuitamente a nível global, razão mais do que suficiente para alguns usuários se empenharem na manutenção contínua do site.

2) Desenvolvimento e realização

Esse é o core drive responsável pelo sentimento de progresso: a percepção de melhoria contínua por parte do usuário à medida que ele investe seu tempo para aprimorar determinada função.

Aqui é fácil utilizarmos o aplicativo “Nike Run Club como referência. A plataforma para mensuração do desempenho de corredores trás o uso de badges, já citados anteriormente, mas aplicados a desafios reais do dia a dia. Mais do que isso: é possível criar grupos com amigos para atingir determinada meta compartilhada, além de realizar um levantamento periódico do progresso até então contando com um comparativo em relação a períodos anteriores. Ou seja, é possível visualizar com gráficos extremamente intuitivos onde o usuário teve melhor ou pior desempenho.

3) Capacitação da criatividade e feedback

É muito provável que você nunca tenha ouvido falar do “Foldit”, um game no formato de puzzle (quebra-cabeças) criado pelo Centro de Ciência de Jogos da Universidade de Washington, em colaboração com o Departamento de Bioquímica da UW.

O objetivo do Foldit é dobrar as estruturas das proteínas selecionadas da forma mais perfeita possível, utilizando as ferramentas fornecidas no jogo. As soluções com maior pontuação são analisadas por pesquisadores, que determinam se existe ou não uma configuração estrutural nativa (estado nativo) que possa ser aplicada a proteínas relevantes no mundo real.

Os cientistas podem então utilizar estas soluções para combater e erradicar doenças e criar inovações biológicas. Um artigo de 2010 na revista científica “Nature” creditou aos 57 mil jogadores do Foldit o fornecimento de resultados úteis que corresponderam ou superaram as soluções computadas por algoritmos.

Ou seja, são literalmente gamers que, em seu tempo livre, ajudaram (e ainda ajudam) a mapear novas maneiras pelas quais as estruturas das proteínas podem se dobrar, e esse conhecimento estrutural delas é fundamental para entender como elas funcionam, direcionando-as com medicamentos.

Vídeo de introdução do game Foldit, reformulado no ano passado com novo layout e funcionalidades.

4) Propriedade e posse

Essa é mais uma das razões pelas quais os usuários são motivados. Eles sentem que possuem algo. Quando um jogador se sente dono, ele deseja inatamente melhorar o que possui e possuir ainda mais.

O Duolingo é um exemplo a ser citado. A plataforma de educação de diferentes idiomas traz o usuário para diferentes divisões à medida que ele progride em relação ao XP (Experience Points) ganho após a realização de cada aula. Caso o usuário fique sem utilizar o aplicativo, ele cairá de divisão e boa parte de seu progresso será descartado.

Alguns usuários possuem “ofensivas” (ou seja, dias seguidos em que realizam pelo menos uma lição) e ganham tags que refletem a duração de suas ofensivas. Perder a posse desse reconhecimento é o que motiva os usuários a utilizarem a plataforma.

5) Influência social e relacionamento

Aqui são incorporados os elementos sociais que impulsionam as pessoas, incluindo aceitação, companhia e companheirismo, mas também competição e inveja.

As redes sociais mais tradicionais se aplicam nesse sentido: Instagram, LinkedIn e Facebook. Todas elas são usadas principalmente por fatores ligados à influência social.

Existe, inclusive, o histórico de um experimento conduzido via Facebook em 2010 referente às eleições estadunidenses. Em apenas algumas horas do dia 2 de novembro de 2010, dia de votação das últimas eleições para o congresso dos Estados Unidos, uma simples mensagem no Facebook levou às urnas 340 mil pessoas que iriam abster seus votos.

No dia em questão, 61 milhões de norte-americanos em idade de votar entraram na plataforma. Os pesquisadores mostraram de forma esporádica a 600 mil deles uma mensagem que os estimulava a votar, sem viés partidário. A mensagem tinha o título "Hoje é dia de eleições", um link para os colégios eleitorais da zona, um botão clicável de "já votei" e um contador com os usuários do Facebook que haviam clicado no botão até aquele momento.

A imensa maioria dos usuários (em torno de 60 milhões) receberam a mesma mensagem, mas com um acréscimo: as fotos de seis amigos que diziam "eu já votei" (ou seja, aqueles que haviam clicado no botão). E, como segundo grupo de controle, outros 600 mil usuários, também escolhidos ao acaso não receberam nenhuma mensagem.

Com essa imensa base de dados, foi possível calcular que a mera mensagem informativa – o controle sem amigos – impulsionou a participação de 60 mil eleitores. E que a mensagem social (a versão com amigos) converteu outros 280 mil participantes. No total, 340 mil pessoas votaram graças à mensagem recebida.

6) Escassez e impaciência

Este é o core drive que remete ao sentimento de querer algo porque você não pode tê-lo. Muitos jogos têm dinâmica de compromisso (volte 2 horas depois para receber sua recompensa).

O fato de uma pessoa não conseguir algo a motiva a pensar ainda mais nisso. Aqui podemos citar a falecida rede social Orkut.

No início, só era possível acessar a plataforma por meio de um convite enviado por e-mail, onde cada novo usuário podia chamar apenas uma pessoa por convite. Esse sentimento de “raridade” é o que gera valor por parte das pessoas.

7) Imprevisibilidade e curiosidade

Este core traduz o impulso de querer descobrir o que acontecerá a seguir. Quando não sabemos o que vai acontecer, nosso cérebro passa a pensar na situação com frequência, pois a emoção de não saber desperta a curiosidade em cada um de nós.

Podemos listar uma série de iniciativas diferentes aqui: desde o uso de plataformas de casa de apostas até redes sociais como um todo.

Vamos usar o Instagram como exemplo: uma ação que, nós usuários, realizamos com frequência é a de atualização do feed. Como fazemos isso? Com o dedo, puxamos a tela de baixo para cima, com o intuito do algoritmo nos atualizar com um conteúdo inédito e que nos traga um sentimento de “descoberta”.

Essa imprevisibilidade também está presente em máquinas caça-níqueis, onde as pessoas jogam por não saber o resultado que virá a seguir. E o movimento, inclusive, é semelhante ao de atualização do feed: ao invés do dedo, há uma alavanca a ser puxada de cima para baixo, trazendo o imprevisível.

8) Perda

O sentimento de perda pode ser algo extremamente poderoso, especialmente se for possível evitar que algo negativo aconteça. Em termos práticos, pode refletir oportunidades que estão desaparecendo, e caso nenhuma ação seja tomada, não poderão mais ser aproveitadas.

Períodos promocionais são um reflexo disso. O aplicativo da Amazon marca o período em que uma data comemorativa traz descontos por um determinado período. Um timer posicionado em uma área específica do site é o responsável por despertar o sentimento de perda, e até mesmo de FOMO (Fear of Missing Out), levando o cliente a tomar uma ação sem pensar duas vezes.

Framework Octalysis:  lado esquerdo vs. o lado direito do cérebro

Yu-kai Chou identificou um certo padrão em relação aos core drives mapeados: os da esquerda representam a lógica, cálculos e propriedade, enquanto os da direita estão mais ligados à criatividade, autoexpressão e aspectos sociais.

DiagramaDescrição gerada automaticamente
Distinção do framework Octalysis entre partes direita e esquerda do cérebro.


Nota: os impulsos centrais do cérebro esquerdo/direito não são considerados uma verdadeira ciência do cérebro; eles são meramente simbólicos, pois tornam a estrutura mais fácil e eficaz durante o design. É útil dividir as coisas entre o lógico e o emocional, e essa definição entre cérebro esquerdo e direito foi feita para ajudar as pessoas a se lembrarem delas com mais facilidade.

Framework Octalysis: Black Hat vs. White Hat

Outra camada a ser considerada no framework Octalysis é que os core drives superiores no octógono são considerados motivadores muito positivos, enquanto os drives inferiores podem ser interpretados como negativos.

As técnicas que utilizam os core drives superiores são chamadas de “Gamificação White Hat”, enquanto as técnicas que utilizam os core drives inferiores são chamadas de “Gamificação Black Hat”.

Nesse sentido, se algo é envolvente, porque permite que você expresse sua criatividade, faz você se sentir bem-sucedido por meio do domínio de diferentes habilidades e dá um maior senso de significado, pode ser classificado como “White Hat”.

Por outro lado, se você está sempre fazendo algo porque não sabe o que vai acontecer a seguir, está constantemente com medo de perder alguma coisa, ou porque há coisas que você não pode ter, há um sentimento negativo (mesmo que mantenha o engajamento), classificado como “Black Hat”..

Diagrama, FormaDescrição gerada automaticamente
Distinção do framework Octalysis entre White Hat e Black Hat.


O problema com os jogos mobile em que os usuários precisam entrar diariamente (seja para resgatar determinados pontos que ficam disponíveis a cada 24h, recolher uma plantação no caso de jogos que simulam uma fazenda etc), é que eles descobriram como executar muitas técnicas de jogo Black Hat, que aumentam a receita dos usuários, mas não fazem os usuários se sentirem bem.

Assim, quando o usuário finalmente perceber que  consegue sair do sistema, ele o fará porque não sente que tem controle sobre si mesmo, assim como o vício de jogos de cassino, por exemplo.

Entretanto, tenha em mente que se algo é Black Hat não necessariamente é ruim – estes são apenas motivadores – e podem ser usados ​​para resultados produtivos e saudáveis ​​ou para resultados maliciosos e manipuladores. Muitas pessoas se submetem voluntariamente à Black Hat Gamification para ir à academia com mais frequência, comer de forma saudável ou evitar apertar o botão de soneca todas as manhãs.

Abaixo, temos uma visão aplicada do framework a uma plataforma. Nesse caso, trouxe aqui o jogo mobile Candy Crush, mas vale destacar que ele pode ser aplicado a qualquer plataforma de forma geral. É possível avaliar a estratégia de gamificação aplicada e estudar possíveis formas de aprimoramento (seja do ponto de vista do usuário final ou da companhia). 

Texto preto sobre fundo brancoDescrição gerada automaticamente
Aplicação do framework Octalysis para o game mobile candy crush, onde cada vetor corresponde a um dos core drives de forma detalhada.

Inclusive, existe um site disponibilizado de forma gratuita pelo próprio Yu-kai Chou para que qualquer um possa experimentar a aplicação do framework em seu aplicativo ou site.

O grande objetivo por trás da gamificação, segundo palavras do próprio autor, é o de “criar um mundo onde não há mais divisão entre o que temos que fazer e o que devemos fazer”, ou seja, revisar a forma como os profissionais aplicam seu trabalho de modo a torná-los mais atraentes e engajados para melhorar a qualidade de vida.

Como aplicar gamificação na estratégia de produtos?

Conforme ressaltado acima, a mera inclusão de pontuação, tabela de pontos, badges e outros elementos não necessariamente fará com que os usuários de determinada plataforma passem a se engajar com a mesma.

A ênfase nos core drivers ressaltados acima e como abordá-los de forma planejada ajudam a compor uma estratégia pautada pela gamificação adequada, dando ênfase à experiência do usuário.

Depois de efetivamente traçada, a melhor forma de testá-la é por meio de testes A/B efetivos, sempre levando em consideração os indicadores e feedbacks da parcela de usuários da plataforma que passarão a ter acesso a essa experiência diversificada.

Claro, vale reforçar: cada ação de uma experiência gamificada precisa de sentido e motivo para estar ali. A criação de um loop de comportamento por parte do consumidor precisa ter sentido para que ressoe com o usuário que a utilizar.

Ao validar as premissas propostas, importante contar com o refinamento contínuo à partir dos indicadores como o MAU (Monthly Active Users), WAU (Weekly Activr Users) e DAU (Daily Activr Users): métricas que passam a fazer sentido para uma experiência imersiva (qual o sentido de uma experiência gamificada se o usuário não passar a acessá-la mais do que uma vez por mês, por exemplo?)

E essas são apenas as camadas iniciais de informações a serem contempladas, uma vez que muitas outras passam a fazer sentido dependendo do escopo do projeto e características da organização.

É importante se manter atento para correções de fluxos e premissas abordadas, que podem (e devem) ser alteradas no decorrer do período de maturidade do produto, momento da empresa e outros fatores.

Na Mentoria CPO do IFTL, é possível aprender com grandes experts de Produto do mercado como fazer estratégias conectadas entre produto, tecnologia e negócio, visando o máximo de engajamento em toda a experiência do usuário. Além de técnicas avançadas de Product Analytics para mapear a performance de testes e a evolução do produto. 

Estamos com turmas abertas! Candidate-se agora e escolha a melhor data de início para você.

Compartilhe esse post:

compartilhe esse artigo em suas redes:

Embaixador

Estevan Sanches

Movido por tentar compreender as diferentes relações sociais que compõem o setor de food service pela ótica de tecnologia e produto. Coordenador de Produto da foodtech We:Digitek e colunista do Product Guru's.

Embaixador

Estevan Sanches

Movido por tentar compreender as diferentes relações sociais que compõem o setor de food service pela ótica de tecnologia e produto. Coordenador de Produto da foodtech We:Digitek e colunista do Product Guru's.

Ver perfil do autor

Redes Sociais do autor:

Tags relacionadas:

Como Yu-Kai Chou revolucionou o conceito de gamificação

Há alguns anos atrás me deparei com um desafio. A grosso modo, deveria alavancar o engajamento de um determinado aplicativo com o qual passaria a trabalhar nos próximos meses. Lá fui eu partir para um Discovery buscando insumos e me atendo às características específicas com as quais precisaria lidar para atender ao meu objetivo.

Foi aí que me deparei com um conceito que já tinha ouvido falar antes, mas não havia me debruçado em detalhes para compreender seu verdadeiro potencial e como poderia ser incorporado em basicamente qualquer aspectos de negócio do dia a dia: a gamificação (ou gamification, no original).

Não, gamificação não é meramente adicionar mecânicas de jogos em diferentes plataformas, como um site, uma comunidade on-line ou um aplicativo. Se trata de estratégias e métodos adotados que visam “derivar todos os elementos divertidos e viciantes encontrados nos jogos e aplicá-los em atividades produtivas ou do mundo real”, segundo a definição de Yu-kai Chou, referência mundial no tema e pioneiro nos estudos de gamificação desde 2003.

Essa definição, inclusive, traduz o que ele chama de “Design Focado no Ser Humano” em oposição a “Design Focado na Função”. É um processo de design que otimiza o ser humano no sistema, em oposição à pura eficiência do sistema.

Conheci o autor Yu-kai Chou justamente durante a discovery que estava realizando em 2016, enquanto ainda estava cambaleando sobre o tema e me deparei com sua palestra para o TEDx Talks realizado em Lausanne, na Suíça, em 2014. Grande parte deste artigo, inclusive, traz  o conteúdo nela apresentado de forma adaptada, afinal ele se mantém extremamente atualizado, mesmo 10 anos depois.

Palestra com o tema "Gamificação para melhorar o nosso mundo" apresentada por Yu-kai Chou no TEDxLausann.

Quem são os gamers hoje em dia?

Na palestra acima, ele traz uma boa contextualização em relação a definição do tema “Gamificação” em si. A começar por uma pergunta bem básica: Quem são os gamers hoje em dia?

Segundo a Pesquisa Game Brasil (PGB), levantamento anual sobre o consumo de jogos eletrônicos em nosso país que chegou a sua 11ª edição em 2024, 73,9% das pessoas entrevistadas afirmaram ter o hábito de jogar videogames.

O crescimento é de 3,8 pontos em relação a 2023, e as mulheres são maioria. Representam 50,9% do total de jogadores.

Em termos de faixa etária, a maior concentração de gamers está entre as faixas de 35 a 39 anos (16,9%) e 30 a 34 anos (16,2%). A escolaridade mais citada foi o ensino superior completo (40,2%), seguida do ensino médio completo (31,1%).

O que isso significa, na prática? Que o brasileiro médio é um gamer. Ou seja, videogames não estão concentrados com um público infantil masculino, como o imaginário popular pode nos levar a pensar: são pessoas que buscam por entretenimento de forma geral.

Gamificação: o equívoco com as recompensas

Em um primeiro momento, podemos interpretar que a mera inclusão de alguns elementos presentes dos videogames em plataformas distintas (como um aplicativo ou site) concretize a gamificação das mesmas. Normalmente, esses elementos se tratam de Pontos, Insígnias e tabelas de classificação (Points, Badges e Leaderboards no original, ou PBL).

Pela definição dada no início do texto, esse é um grande equívoco.

Isso porque são aspectos que, apesar de estarem presentes em grande parte dos videogames, são apenas parte de um contexto maior. Se um gamer for questionado dos motivos pelos quais ele gosta de determinado jogo, ele não vai mencionar que é por conta do uso de pontos ou conquista de insígnias. É provável que a resposta se aproxime de algo, como: o lore da história apresentada, a imersão em determinados mundos, os desafios apresentados etc. Ou seja, boas experiências de gamificação não começam por seus elementos, mas sim pelo o que Yu-kai Chou chama de core drives.

Framework Octalysis: Compreendendo Core Drives

Core Drives podem ser interpretados como a motivação das pessoas. A razão por trás de determinados comportamentos. Visando compreendê-los, Yu-kai Chou criou o framework Octalysis com o objetivo final de somar ao design de experiências dos usuários, identificando e detalhando quais os aspectos mais envolventes e motivadores de usuários/plataforma.

DiagramaDescrição gerada automaticamente
Detalhamento do framework Octalysis, desenvolvido por Yu-kai Chou.

Detalho abaixo quais são os 8 core drives mapeados, bem como seus significados e exemplos de aplicações.

1) Significado e chamado ao épico

Motivação pelo qual os usuários acreditam que fazem parte de algo maior que eles mesmos: ou seja, a contribuição para uma iniciativa com grande importância.

Podemos usar o Wikipedia como exemplo: como é possível manter um acervo com mais de 1,1 milhão de artigos válidos e constantemente atualizados, sendo que o site não exibe publicidade e tem suas receitas extremamente controladas? Eles contam com voluntários, ou wikipedistas para realização da revisão de forma recorrente.

O motivo para mais de 3 milhões de pessoas já terem realizado alterações em pelo menos uma das páginas da plataforma é a noção de contribuição para o conhecimento humano: se trata de conteúdo acessível e disponibilizado gratuitamente a nível global, razão mais do que suficiente para alguns usuários se empenharem na manutenção contínua do site.

2) Desenvolvimento e realização

Esse é o core drive responsável pelo sentimento de progresso: a percepção de melhoria contínua por parte do usuário à medida que ele investe seu tempo para aprimorar determinada função.

Aqui é fácil utilizarmos o aplicativo “Nike Run Club como referência. A plataforma para mensuração do desempenho de corredores trás o uso de badges, já citados anteriormente, mas aplicados a desafios reais do dia a dia. Mais do que isso: é possível criar grupos com amigos para atingir determinada meta compartilhada, além de realizar um levantamento periódico do progresso até então contando com um comparativo em relação a períodos anteriores. Ou seja, é possível visualizar com gráficos extremamente intuitivos onde o usuário teve melhor ou pior desempenho.

3) Capacitação da criatividade e feedback

É muito provável que você nunca tenha ouvido falar do “Foldit”, um game no formato de puzzle (quebra-cabeças) criado pelo Centro de Ciência de Jogos da Universidade de Washington, em colaboração com o Departamento de Bioquímica da UW.

O objetivo do Foldit é dobrar as estruturas das proteínas selecionadas da forma mais perfeita possível, utilizando as ferramentas fornecidas no jogo. As soluções com maior pontuação são analisadas por pesquisadores, que determinam se existe ou não uma configuração estrutural nativa (estado nativo) que possa ser aplicada a proteínas relevantes no mundo real.

Os cientistas podem então utilizar estas soluções para combater e erradicar doenças e criar inovações biológicas. Um artigo de 2010 na revista científica “Nature” creditou aos 57 mil jogadores do Foldit o fornecimento de resultados úteis que corresponderam ou superaram as soluções computadas por algoritmos.

Ou seja, são literalmente gamers que, em seu tempo livre, ajudaram (e ainda ajudam) a mapear novas maneiras pelas quais as estruturas das proteínas podem se dobrar, e esse conhecimento estrutural delas é fundamental para entender como elas funcionam, direcionando-as com medicamentos.

Vídeo de introdução do game Foldit, reformulado no ano passado com novo layout e funcionalidades.

4) Propriedade e posse

Essa é mais uma das razões pelas quais os usuários são motivados. Eles sentem que possuem algo. Quando um jogador se sente dono, ele deseja inatamente melhorar o que possui e possuir ainda mais.

O Duolingo é um exemplo a ser citado. A plataforma de educação de diferentes idiomas traz o usuário para diferentes divisões à medida que ele progride em relação ao XP (Experience Points) ganho após a realização de cada aula. Caso o usuário fique sem utilizar o aplicativo, ele cairá de divisão e boa parte de seu progresso será descartado.

Alguns usuários possuem “ofensivas” (ou seja, dias seguidos em que realizam pelo menos uma lição) e ganham tags que refletem a duração de suas ofensivas. Perder a posse desse reconhecimento é o que motiva os usuários a utilizarem a plataforma.

5) Influência social e relacionamento

Aqui são incorporados os elementos sociais que impulsionam as pessoas, incluindo aceitação, companhia e companheirismo, mas também competição e inveja.

As redes sociais mais tradicionais se aplicam nesse sentido: Instagram, LinkedIn e Facebook. Todas elas são usadas principalmente por fatores ligados à influência social.

Existe, inclusive, o histórico de um experimento conduzido via Facebook em 2010 referente às eleições estadunidenses. Em apenas algumas horas do dia 2 de novembro de 2010, dia de votação das últimas eleições para o congresso dos Estados Unidos, uma simples mensagem no Facebook levou às urnas 340 mil pessoas que iriam abster seus votos.

No dia em questão, 61 milhões de norte-americanos em idade de votar entraram na plataforma. Os pesquisadores mostraram de forma esporádica a 600 mil deles uma mensagem que os estimulava a votar, sem viés partidário. A mensagem tinha o título "Hoje é dia de eleições", um link para os colégios eleitorais da zona, um botão clicável de "já votei" e um contador com os usuários do Facebook que haviam clicado no botão até aquele momento.

A imensa maioria dos usuários (em torno de 60 milhões) receberam a mesma mensagem, mas com um acréscimo: as fotos de seis amigos que diziam "eu já votei" (ou seja, aqueles que haviam clicado no botão). E, como segundo grupo de controle, outros 600 mil usuários, também escolhidos ao acaso não receberam nenhuma mensagem.

Com essa imensa base de dados, foi possível calcular que a mera mensagem informativa – o controle sem amigos – impulsionou a participação de 60 mil eleitores. E que a mensagem social (a versão com amigos) converteu outros 280 mil participantes. No total, 340 mil pessoas votaram graças à mensagem recebida.

6) Escassez e impaciência

Este é o core drive que remete ao sentimento de querer algo porque você não pode tê-lo. Muitos jogos têm dinâmica de compromisso (volte 2 horas depois para receber sua recompensa).

O fato de uma pessoa não conseguir algo a motiva a pensar ainda mais nisso. Aqui podemos citar a falecida rede social Orkut.

No início, só era possível acessar a plataforma por meio de um convite enviado por e-mail, onde cada novo usuário podia chamar apenas uma pessoa por convite. Esse sentimento de “raridade” é o que gera valor por parte das pessoas.

7) Imprevisibilidade e curiosidade

Este core traduz o impulso de querer descobrir o que acontecerá a seguir. Quando não sabemos o que vai acontecer, nosso cérebro passa a pensar na situação com frequência, pois a emoção de não saber desperta a curiosidade em cada um de nós.

Podemos listar uma série de iniciativas diferentes aqui: desde o uso de plataformas de casa de apostas até redes sociais como um todo.

Vamos usar o Instagram como exemplo: uma ação que, nós usuários, realizamos com frequência é a de atualização do feed. Como fazemos isso? Com o dedo, puxamos a tela de baixo para cima, com o intuito do algoritmo nos atualizar com um conteúdo inédito e que nos traga um sentimento de “descoberta”.

Essa imprevisibilidade também está presente em máquinas caça-níqueis, onde as pessoas jogam por não saber o resultado que virá a seguir. E o movimento, inclusive, é semelhante ao de atualização do feed: ao invés do dedo, há uma alavanca a ser puxada de cima para baixo, trazendo o imprevisível.

8) Perda

O sentimento de perda pode ser algo extremamente poderoso, especialmente se for possível evitar que algo negativo aconteça. Em termos práticos, pode refletir oportunidades que estão desaparecendo, e caso nenhuma ação seja tomada, não poderão mais ser aproveitadas.

Períodos promocionais são um reflexo disso. O aplicativo da Amazon marca o período em que uma data comemorativa traz descontos por um determinado período. Um timer posicionado em uma área específica do site é o responsável por despertar o sentimento de perda, e até mesmo de FOMO (Fear of Missing Out), levando o cliente a tomar uma ação sem pensar duas vezes.

Framework Octalysis:  lado esquerdo vs. o lado direito do cérebro

Yu-kai Chou identificou um certo padrão em relação aos core drives mapeados: os da esquerda representam a lógica, cálculos e propriedade, enquanto os da direita estão mais ligados à criatividade, autoexpressão e aspectos sociais.

DiagramaDescrição gerada automaticamente
Distinção do framework Octalysis entre partes direita e esquerda do cérebro.


Nota: os impulsos centrais do cérebro esquerdo/direito não são considerados uma verdadeira ciência do cérebro; eles são meramente simbólicos, pois tornam a estrutura mais fácil e eficaz durante o design. É útil dividir as coisas entre o lógico e o emocional, e essa definição entre cérebro esquerdo e direito foi feita para ajudar as pessoas a se lembrarem delas com mais facilidade.

Framework Octalysis: Black Hat vs. White Hat

Outra camada a ser considerada no framework Octalysis é que os core drives superiores no octógono são considerados motivadores muito positivos, enquanto os drives inferiores podem ser interpretados como negativos.

As técnicas que utilizam os core drives superiores são chamadas de “Gamificação White Hat”, enquanto as técnicas que utilizam os core drives inferiores são chamadas de “Gamificação Black Hat”.

Nesse sentido, se algo é envolvente, porque permite que você expresse sua criatividade, faz você se sentir bem-sucedido por meio do domínio de diferentes habilidades e dá um maior senso de significado, pode ser classificado como “White Hat”.

Por outro lado, se você está sempre fazendo algo porque não sabe o que vai acontecer a seguir, está constantemente com medo de perder alguma coisa, ou porque há coisas que você não pode ter, há um sentimento negativo (mesmo que mantenha o engajamento), classificado como “Black Hat”..

Diagrama, FormaDescrição gerada automaticamente
Distinção do framework Octalysis entre White Hat e Black Hat.


O problema com os jogos mobile em que os usuários precisam entrar diariamente (seja para resgatar determinados pontos que ficam disponíveis a cada 24h, recolher uma plantação no caso de jogos que simulam uma fazenda etc), é que eles descobriram como executar muitas técnicas de jogo Black Hat, que aumentam a receita dos usuários, mas não fazem os usuários se sentirem bem.

Assim, quando o usuário finalmente perceber que  consegue sair do sistema, ele o fará porque não sente que tem controle sobre si mesmo, assim como o vício de jogos de cassino, por exemplo.

Entretanto, tenha em mente que se algo é Black Hat não necessariamente é ruim – estes são apenas motivadores – e podem ser usados ​​para resultados produtivos e saudáveis ​​ou para resultados maliciosos e manipuladores. Muitas pessoas se submetem voluntariamente à Black Hat Gamification para ir à academia com mais frequência, comer de forma saudável ou evitar apertar o botão de soneca todas as manhãs.

Abaixo, temos uma visão aplicada do framework a uma plataforma. Nesse caso, trouxe aqui o jogo mobile Candy Crush, mas vale destacar que ele pode ser aplicado a qualquer plataforma de forma geral. É possível avaliar a estratégia de gamificação aplicada e estudar possíveis formas de aprimoramento (seja do ponto de vista do usuário final ou da companhia). 

Texto preto sobre fundo brancoDescrição gerada automaticamente
Aplicação do framework Octalysis para o game mobile candy crush, onde cada vetor corresponde a um dos core drives de forma detalhada.

Inclusive, existe um site disponibilizado de forma gratuita pelo próprio Yu-kai Chou para que qualquer um possa experimentar a aplicação do framework em seu aplicativo ou site.

O grande objetivo por trás da gamificação, segundo palavras do próprio autor, é o de “criar um mundo onde não há mais divisão entre o que temos que fazer e o que devemos fazer”, ou seja, revisar a forma como os profissionais aplicam seu trabalho de modo a torná-los mais atraentes e engajados para melhorar a qualidade de vida.

Como aplicar gamificação na estratégia de produtos?

Conforme ressaltado acima, a mera inclusão de pontuação, tabela de pontos, badges e outros elementos não necessariamente fará com que os usuários de determinada plataforma passem a se engajar com a mesma.

A ênfase nos core drivers ressaltados acima e como abordá-los de forma planejada ajudam a compor uma estratégia pautada pela gamificação adequada, dando ênfase à experiência do usuário.

Depois de efetivamente traçada, a melhor forma de testá-la é por meio de testes A/B efetivos, sempre levando em consideração os indicadores e feedbacks da parcela de usuários da plataforma que passarão a ter acesso a essa experiência diversificada.

Claro, vale reforçar: cada ação de uma experiência gamificada precisa de sentido e motivo para estar ali. A criação de um loop de comportamento por parte do consumidor precisa ter sentido para que ressoe com o usuário que a utilizar.

Ao validar as premissas propostas, importante contar com o refinamento contínuo à partir dos indicadores como o MAU (Monthly Active Users), WAU (Weekly Activr Users) e DAU (Daily Activr Users): métricas que passam a fazer sentido para uma experiência imersiva (qual o sentido de uma experiência gamificada se o usuário não passar a acessá-la mais do que uma vez por mês, por exemplo?)

E essas são apenas as camadas iniciais de informações a serem contempladas, uma vez que muitas outras passam a fazer sentido dependendo do escopo do projeto e características da organização.

É importante se manter atento para correções de fluxos e premissas abordadas, que podem (e devem) ser alteradas no decorrer do período de maturidade do produto, momento da empresa e outros fatores.

Na Mentoria CPO do IFTL, é possível aprender com grandes experts de Produto do mercado como fazer estratégias conectadas entre produto, tecnologia e negócio, visando o máximo de engajamento em toda a experiência do usuário. Além de técnicas avançadas de Product Analytics para mapear a performance de testes e a evolução do produto. 

Estamos com turmas abertas! Candidate-se agora e escolha a melhor data de início para você.

Compartilhe esse post:

compartilhe esse artigo em suas redes:

Embaixador

Estevan Sanches

Movido por tentar compreender as diferentes relações sociais que compõem o setor de food service pela ótica de tecnologia e produto. Coordenador de Produto da foodtech We:Digitek e colunista do Product Guru's.

Ver perfil do autor

Redes Sociais do autor:

Tags relacionadas: